sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Precisamos falar sobre o Kevin



Eva e Kevin estão em pé de guerra desde 11 de abril de 1983, dia em que Kevin, ao vir ao mundo, rejeitou a mãe pela primeira vez. Eva esperava sentir o amor incondicional que os amigos e conhecidos tanto falavam, porém, quando recebe o primogênito em seus braços, logo após o parto, não é isso o que acontece. Com a incerteza se estava fazendo a coisa certa e se realmente queria ser mãe, Eva sente alívio quando seu recém-nascido é afastado de si enquanto ainda recebia os pontos da equipe médica.

A infância com Kevin é terrível. Nos primeiros meses ele chora durante todo o dia, incessantemente, ao ponto de fazer com que suas babás pedissem demissão. Depois, esgotado do berreiro diário, simplesmente se cala. Sendo um bebê mole, Eva tentava incentivá-lo de todas as formas, mas Kevin ficava parado no lugar onde era posto, entediado, apático, sem se interessar por nada, sem interagir – exceto na ocasião em que chutou a bola para a mãe três vezes.

Na tentativa de saber se o primogênito possuía algum problema que explicasse seu comportamento, e assim talvez pudesse ser tomada por compaixão e se simpatizar por ele, Eva compartilha sua desconfiança de que talvez o filho fosse autista – ou então tivesse déficit de audição ou um problema qualquer nas cordas vocais devido ao choro de bebê – no entanto, a única constatação do pediatra é de que Kevin “era um menino meio frouxo”.

Ao passar dos anos, a falta de ligação entre os dois se acentua, assim como a natureza de Kevin se mostra tão perversa que por vezes conseguia surpreender até a mãe, que se mostrava sempre disposta a acreditar na ruindade nata do filho. Por outro lado, Franklin depositava uma crença cega na inocência de Kevin e na falsa boa relação que acreditava terem construído. Com opiniões opostas a respeito dos incidentes envolvendo o filho mais velho, o casal enfrenta tantos desentendimentos e desacordos que não é de se surpreender quando o divórcio é cogitado. Como Eva analisara várias vezes: Kevin aprendera a dividir para conquistar.

Em Precisamos falar sobre o Kevin, a primeira pergunta que vem à cabeça não só dos personagens como também do leitor paira em cada linha: por quê? O que leva Kevin Khatchadourian a cometer uma chacina, sendo ele um adolescente de família rica, filho de bons pais e estudante de boas escolas? Ele nasceu assim ou se tornou um monstro ao longo dos anos? Ou uma coisa se juntou à outra e assim construiu sua personalidade? Aliás, era mesmo essa a sua personalidade? Nas duas semanas em que ficou doente, quando ainda criança, um Kevin que tinha um pijama preferido, gostava da comida da mãe, era paciente com a irmãzinha e pedia desculpas veio à tona. Por que então ele não deixava se mostrar nas outras vezes, e apenas nessa, quando aparentemente a doença o deixou cansado demais para sustentar sua máscara? Será que, bem no fundo, tinha sentimentos? E, se tinha, era ele um menino infeliz? E por que matou aquelas pessoas? Porque elas tinham coisas favoritas? Porque ele as odiava? Para punir a mãe? Ou para ter a atenção dela apenas para si? O que, de fato, se passava na cabeça de Kevin?

Ao longo da narrativa, uma variedade de sentimentos acomete o leitor diante das ações dos personagens. Eu, por exemplo, senti raiva pelos momentos machistas de Franklin – ainda que raros – e por ele ser tão ingênuo com tudo o que acontecia ao ponto de parecer um palerma. Senti raiva de Eva por ter rejeitado Kevin de volta, por tê-lo chamado de merdinha – mesmo que sua paciência fosse posta à prova todos os dias e mesmo que ela tenha se esforçado ao máximo para fazer o certo. Além disso, fiquei infeliz por Kevin, por ser incapaz de ter algo ou alguém favorito, por ser incapaz de se interessar.

O filme

Imagem retirada do Google
Imagem retirada do Google

Confesso que não foi a melhor adaptação para o cinema que já vi. Ignorando a falácia de que “o livro é sempre melhor que o filme”, Precisamos falar sobre o Kevin, em versão cinematográfica, foi retratado de forma superficial. Considerando o tempo total (1h50, aproximadamente), talvez o longa pudesse ter sido estendido por uns 30 ou 40 minutos e aproveitado certos acontecimentos muitíssimo importantes.

A primeira grande diferença fica no próprio nome da história – Precisamos falar sobre o Kevin – que ficou mal explicado no filme. A narrativa do livro – espetacular, devo dizer – fica por conta de Eva, que, um ano após a matança, começa a escrever cartas para Franklin (estilo As vantagens de ser invisível), analisando e relembrando os momentos mais importantes que tiveram durante o casamento, antes mesmo de se tornarem pais, até todo o sofrimento causado por um filho sociopata, autor de uma chacina.

Outro aspecto que me causou incômodo: no início do livro, capítulos e capítulos são dedicados à vida a dois que Eva e Franklin levavam – e o que fez com que decidissem ter um filho e dessa forma responder ao que chamavam de Grande Questão, ou seja, o significado da vida e as expectativas que faziam em relação a ela, além de suas próprias questões existenciais.

As visitas que Eva fazia ao filho na prisão também foram desperdiçadas no filme, retratando apenas a falta de ligação imensa entre os personagens – que sim, existia, mas poderia ter sido mostrada de outra forma (e foi) – em vez de aproveitar os diálogos entre os dois e principalmente como tratavam o assunto que os levava ali.

Outros pequenos detalhes, que talvez sejam considerados exigências de uma leitora perfeccionista, também me fizeram falta. O bordão mãemãe, dito por Kevin desde quando resolvera falar, por volta dos três ou quatro anos, e usado por ele até a adolescência – porém de forma irônica. A maneira como o caso Kevin Khatchadourian foi retratado pela imprensa (KK) e como Eva se referia ao dia da matança: quinta-feira. A explosão de Kevin para com o pai, momentos antes de cometer os assassinatos, talvez a única vez em que fora sincero com ele. Entre outros detalhes... Não sei ao certo se foi intencional, mas, no geral, senti falta de diálogos no filme.

Mas é claro que, na minha opinião, o longa tem pontos positivos. E muitos.

A atrocidade cometida por Kevin trouxe indignação e revolta da sociedade não só para ele, mas também uma repressão muito maior e mais difícil de lidar para sua mãemãe, que passou a viver um pesadelo diário e ter todos os dedos apontados para si como a culpada por aquele menino mau e, consequentemente, pela chacina.

Abaixo, um trecho retirado do livro que não está presente no filme, mas que ficou bastante claro em outras cenas:

“É sempre culpa da mãe, não é verdade?”, disse ela, bem baixinho, pegando o casaco. “Aquele menino deu errado porque a mãe dele bebia, ou se drogava. Ela deixava o garoto solto na rua; ela não ensinou a ele o que é certo e o que é errado. Nunca estava em casa quando ele voltava da escola. Ninguém nunca diz que o pai era um bêbado, ou que o pai nunca estava em casa quando o garoto voltava da escola. E ninguém jamais diz que alguns desses garotos não prestam e pronto. Não vá você acreditar nessa balela. Não deixe que eles ponham nas suas costas essa matança toda”.

Por fim, a preocupação em colocarem atores fisicamente parecidos e a escolha desses próprios intérpretes para viverem os personagens – principalmente Tilda Swinton e Ezra Miller. Não me considero a melhor pessoa do mundo para analisar atuação, seja de quem for, mas o trabalho dos atores citados neste parágrafo trouxeram pontos positivos à adaptação.

Em resumo, Precisamos falar sobre o Kevin é aquele tipo de livro que eu indico para qualquer pessoa, independente de predileção literária. E mesmo o filme não tendo me agradado muito, com certeza vale a pena ver e rever. A história, no geral, nos traz um tema pouco explorado e confissões sinceras de uma mãe acerca de seus erros e acertos da maternidade. É uma história que nos faz refletir.